Existem regras para um bom roteiro, mas também não existe nenhuma regra que não possa ser quebrada. As "regras" são elementos que roteiristas podem usar para ajudar a fazer aquela narrativa fluir, mas não significa que são infalíveis ou que devem sempre ser seguidas. A bem da verdade, um roteiro bem escrito tenta seguir algumas destas "regras", que na verdade vamos chamar de elementos de roteiro. Um destes elementos, por exemplo, é o arco do protagonista, que, de forma resumida, precisa passar por uma transformação ao longo da trama. Não utilizar este elemento de roteiro pode atrapalhar a trama e o escritor, mas isto não significa que um filme não possa ser bem executado caso utilize, mas certamente terá uma tarefa mais difícil em mãos.
Tendo estabelecido os elementos de roteiro, este texto irá analisar como Quentin Tarantino utiliza alguns deles para trazer uma história de vingança que marcou o cinema, sem inventar muito a roda.
Faça o protagonista sofrer (e o público comprar a dor)
A protagonista de Kill Bill, a Noiva, já começa o filme na completa desgraça: ela perde o futuro marido e o bebê ainda na barriga através de um massacre brutal causado por ex-colegas de trabalho. Neste único momento, temos o sentimento de derrota, perda de entes familiares e traição. O filme estabelece o sofrimento da protagonista e o público compra no mesmo instante: você quer vê-la se vingar de cada um deles.
O filme ainda traz outros pontos de sofrimento, como o fato de a Noiva ficar em coma por quatro anos e ainda descobrir que foi estuprada neste período por sabe-se lá quantos desgraçados.
Um arco do protagonista/herói
No sofrimento da Noiva, estabelecemos o arco da protagonista: ela estava vivendo uma vida pacata e isto foi arrancado dela, agora ela irá partir numa jornada de vingança. Ao fim desta primeira parte da jornada, a Noiva não quer mais a vida pacata, ela é movida apenas pelo sentimento de vingança.
Temos ainda elemento de roteiro comum no arco: o preparo do herói, quando a Noiva vai atrás de uma espada especial para derrotar seus inimigos.
O vilão engrandece o herói. Se o vilão é pequeno, o herói também é
Aqui o roteiro entende um elemento importantíssimo de boas tramas e principalmente tramas de vingança: os vilões precisam de profundidade. Precisamos entender esses antagonistas, não necessariamente se compadecer deles ou concordar com eles, mas conhecer quem eles são, o que pensam, por que agem como agem.
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O-Ren Ishii é uma das antagonistas de Kill Bill Vol. 1 |
Kill Bill dedica um capítulo inteiro a apresentar a vilã O-Ren, o que engrandece muito o embate final do filme. Mesmo os "capangas" de O-Ren recebem um pouco de foco do roteiro. Esse foco torna a morte deles mais pessoal. Saber quem a Noiva está enfrentando faz com que vejamos aquilo de maneira mais séria: O-Ren não é somente a mulher que matou a família da Noiva, é uma mulher que subiu na Yakuza, vingou a morte do pai etc.
O mesmo acontece com Vernita Green. Descobrimos rapidamente que ela possui uma filha, que ama a mesma e quer viver por ela, então, quando ela finalmente morre nas mãos da Noiva, existe um sentimento compartilhado entre a protagonista e o público: o pesar de ver aquela criança sem a mãe.
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Filha de Vernita Green presencia a morte da própria mãe. |
Exposição da maneira correta
Exposição é explicar a trama para o público. É impossível contar um filme sem exposição. Muitas vezes, essa exposição é feita da maneira errada, através de diálogos muito didáticos ou vindo de diálogos que na vida real não aconteceriam de forma natural.
Vou deixar um exemplo de como Kill Bill faz uma exposição excelente e como muitos poderiam ter feito errado.
No início do filme, não sabemos muito bem o motivo da vingança da Noiva, mas conversando com uma das mulheres que ela quer matar, ela diz mais ou menos o seguinte: "se eu fosse igualar o que você fez comigo, eu deveria matar você, matar sua filha e esperar seu marido chegar do trabalho para matá-lo também". Neste diálogo, já sabemos o que fizeram com a Noiva. É simples, natural e eficaz. Provavelmente, outros realizadores teriam feito um diálogo assim: "Você matou meu marido, matou meu bebê e me matou, para eu igualar as coisas, teria que fazer o mesmo com você". Não seria o pior diálogo do mundo e a maioria talvez nem visse problema algum nisso, mas esta versão é bem menos natural, pois naturalmente não damos informações a pessoas que já sabem delas. A Vernita sabia que tinha matado a família da noiva, logo esta última versão do diálogo perde um pouco a naturalidade. A carga da versão do filme é maior, ela expõe ao público a informação necessária e ainda coloca em evidência não o que aconteceu, mas o que vai acontecer: a vingança, que é o tema central do filme.
Boa divisão de acontecimentos
O roteiro, junto com a edição, entrega uma narrativa pensada para instigar o público e não sobrecarregar a trama com muitos diálogos ou com muitas cenas de ação. Na parte final, existe um trecho gigantesco de confronto sanguinolento, o público não cansa com a cena pois antes tivemos uma boa dose de cenas com diálogos que movem a trama.
Imagine o filme inteiro cheio de cenas menores, mas similares à última, perderíamos o sentimento de clímax.
Conclusão
Kill Bill Vol. 1 possui muitos outros elementos de roteiro utilizados e estes foram alguns deles. Quando gostamos de cinema, estas informações são úteis para engrandecer nossa experiência ou para nos ajudar a criar nossa própria história, quem sabe, afinal, alguns de nós não queiram também ser um diretor/roteirista de cinema.
Escrito pelo andarilho Júlio Santos.
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